Ontem cruzei-me com uma partilha entre tantas de indignaçaão com a recomendação dos tão na moda pudins proteicos por parte de nutricionistas e outros profissionais. O argumento era o do costume. Não são naturais, logo não podem fazer bem. Os aditivos são maus, e a lista de ingredientes é demasiado longa. Muita coisa adicionada só pode ser péssimo para a saúde. Não existe nenhuma base racional para associar o natural ao bem, e o artificial ao mal. É a própria Natureza que nos prova isso. Apenas a nossa dissonância cognitiva e um viés persistente em acreditar que o natural é bom e seguro. E a retórica de apelar à Natureza como estratégia argumentativa falaciosa.
Não precisamos de ir longe para encontrar venenos no mundo natural. A hipoglicina A e a metilenociclopropilglicina foram responsáveis pela morte de mais de 100 crianças malnutridas na Índia. Presentes nas líchias que ingeriram de estômago vazio. A intoxicação com cianeto ocorre ocasionalmente em trabalhadores de plantações de mandioca. O urânio está presente na Natureza, e isso não faz dele bom. O argumento naturalista não tem qualquer fundamento racional, mas é usado e abusado como estratégia de marketing e pura retórica na falta de fundamentação objectiva. Estamos dispostos a pagar mais por produtos classificados como “naturais” ou “sem aditivos”, mesmo que na prática não difiram em nada dos regulares. Estudos de mercado sugerem por exemplo que temos uma larga preferência por água de nascente natural a água destilada e subsequentemente mineralizada, embora ambas tenham exactamente a mesma composição. Quando nos dão a escolher dois medicamentos, um rotulado como “natural” e outro como “sintético”, mais de 70% das pessoas opta pelo natural quando foram instruídas para a igual eficácia e segurança. Mas pior, cerca de 20% ainda opta pelo natural quando lhes é dito que é menos seguro do que o sintético. Desenvolver carne em laboratório é um processo de cultura celular relativamente simples. Mas os consumidores mostram resistência à introdução no mercado, acreditando que não será tão nutritivo ou que poderá até ser prejudicial. Carne é músculo. Um tecido que pode perfeitamente ser produzido em laboratório, sem prejuízo das suas qualidades. Não importa o fundamento, a percepção será sempre distorcida da realidade.
A palavra aditivo por si carrega um peso. A nossa percepção sobre o carácter de um alimento é particularmente afectada por transformações que envolvem a adição de algo. Por exemplo, sumo de laranja com polpa adicionada à posteriori é considerado menos natural do que o sumo sem polpa, e uma cultura geneticamente modificada em que um gene foi silenciado é tida como menos prejudicial do que uma em que o gene foi adicionado. E a própria falta de conhecimento gera preconceito. A percepção é completamente diferente se na lista de ingredientes estiver escrito vitamina C ou E300, embora seja exactamente a mesma coisa.
Tudo na Natureza são químicos. Analisemos uma simples banana, que se tivesse lista de ingredientes seria assim:
Água, glucose, frutose, sacarose, celulose, lignina, frutooligossacarídeos, ácido glutâmico, ácido aspártico, histidina, leucina, lisina, fenilalanina, arginina, valina, alanina, serina, glicina, treonina, isoleucina, prolina, triptofano, cisteína, tirosina, metionina, ácido palmítico, ácido linoleico, ácido linolénico, ácido oleico, ácido palmitoleico, ácido esteárico, ácido láurico, ácido mirístico, ácido cáprico, fitoesteróis, E515, oxalato, E300, E306, tocoferóis, filoquinona, tiamina, riboflavina, E160a, etilhexanoato, etilbutanoato, 3-metilbut-1-etanoato, pentilacetato, E1510, eteno, potássio, sódio, fósforo, magnésio, cálcio, selénio, fluor, cobre, zinco, ferro.
Se dissociarmos esta extensa lista de compostos do alimento a que se refere, toda a retórica naturalista nos leva a crer que se trata de um alimento mau. Mas é uma só uma banana! Se decidíssemos misturar isto num laboratório teríamos um produto em tudo igual, mas de certeza que a grande maioria ainda iria considerar a banana superior. Só porque nasce numa árvore. E temos de concordar que essa não é uma razão objectiva. “Ah mas há toda uma matriz do alimento”. Quando o digeres e assimilas, tudo se resume aos seus compostos básicos. “Ah mas o alimento vivo tem uma energia não sei quê”. Por favor…
Voltemos aos pudins proteicos, e a uma lista de ingredientes exemplificativa:
Leite desnatado pasteurizado (88%), proteínas do leite, cacau em pó (1,8%), amido modificado, cacau magro em pó (0,3%), espessantes (carragenina e carboximetilcelulose), estabilizador (fosfatos de sódio), aroma natural, edulcorantes (sucralose e acessulfame K), regulador de acidez (hidróxido de sódio).
Não podemos fazer considerações sobre a sua qualidade com apelo ao “natural”. Não só é ambíguo classificar um alimento dessa forma, como não tem qualquer valor objectivo. Precisamos de analisar os ingredientes de um processado um a um, e na sua combinação de que resulta o valor nutricional. E desse escrutínio objectivo, com base na evidência científica, não há nada além de puro preconceito que possa levar a crer que não seja recomendável. Leite magro, proteína láctea, cacau? Amido modificado e carboximetilcelulose também não gera grande polémica. Sobre a carragenina já falei aqui, e da confusão premeditada com a poligenina, um produto da degradação artificial da carragenina que se considera carcinogénica. Mas que não é possível de produzir em condições biológicas, a não ser que o teu estômago tenha um pH inferior a 1 e atinja temperaturas de 80ºC. O meu não consegue. Quanto aos edulcorantes, apesar da controvérsia não há evidência de um efeito tóxico. Talvez o tenhas com as doses dezenas de vezes superiores à exposição recomendada, ou por administração IV como se faz em ratinhos. A “dose faz o veneno” é uma premissa fundamental da toxicologia. Escolhe bem os teus, porque é virtualmente impossível viver sem exposição a toxinas. Desde o ar que respiramos, a água que bebemos, os alimentos que comemos, a cosméticos e produtos de higiene que usamos. E é também por isso que desenvolvemos ao longo da evolução todo um sistema de detoxificação, e mecanismos de resiliência que são estimulados pela própria exposição.
E quanto aos suplementos? Um outro expoente da dissonância cognitiva naturalista. Considerados naturais, quando de natural não têm nada. Fontes concentradas com doses sem par na natureza, numa matriz totalmente artificial. Extratos que resultam do isolamento de compostos que não existem dessa forma, e sujeitos a processos químicos e físicos de extração. Um suplemento "natural" não é menos processado do que um pudim proteico. Mas são encarados de forma distinta.
O cunho de “natural” ou “sem aditivos” não acrescenta valor por si ao produto. Nem é selo de benefício e segurança. Na verdade, não diz absolutamente nada. É pura retórica que visa explorar o nosso lado mais irracional, na associação intrínseca mas infundada entre o puro da natureza, segurança e saúde. Combater a quimiofobia é uma forma de promover a literacia científica e educação alimentar. A transformação e processamento alimentar não é inerentemente mau, nem bom. De uma forma geral, recomendar para a redução do consumo de ultra-processados terá benefícios. Não pela exposição a toxinas, mas pela redução instantânea da densidade calórica alimentar, gordura, açúcar, e sal. Mas vilificar um alimento porque é processado não. Nem deixar de reconhecer eventuais benefícios por mero preconceito.
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