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Foto do escritorSérgio Veloso

A polémica dos edulcorantes artificiais e a OMS

O tema do momento volta a ser os adoçantes artificiais, depois da nova orientação da OMS para os evitar "como meio de atingir controlo de peso e redução do risco de doenças não-transmissíveis". Uma recomendação que a própria OMS classifica como condicional, portanto com um baixo grau de certeza e que requer uma discussão mais alargada da evidência disponível. Vejo o regozijo com que alguns celebram esta diretriz como se a OMS fosse conhecida pelos seus consensos. Os mesmos que a criticaram pela recomendação do uso de máscaras ou da vacinação em massa para a COVID-19, pois tudo o que precisávamos era da nossa imunidade natural. E às vezes de algum bom-senso. No caso dos adoçantes artificiais faltou um pouco à OMS, que às vezes se sai com estas coisas para tentar justificar a sua inutilidade. E que me fez quebrar o jejum sabático das redes sociais. Se o que fazem é emitir recomendações, que recomendem avaliando o impacto enviesado e perverso que podem ter na opinião pública, que não vai ler o relatório nem sequer o entender.


Em primeiro lugar, as nuances de linguagem. Não recomendar não significa que seja prejudicial, nem a literatura aponta nesse sentido. Como é habitual, a OMS centra-se na epidemiologia para basear as conclusões dos seus painéis de especialistas. Mas epidemiologia em nutrição tem muito que se lhe diga pela dificuldade que existe em associar efeitos muito pequenos e que se manifestam ao longo de muitos anos no risco de doença. Não serve por si para inferir causalidade. De facto existem estudos observacionais que associam os edulcorantes artificiais à diabetes e doenças cardiometabólicas em geral. E também ensaios em animais que sugerem alterações potencialmente nefastas em mecanismos homeostáticos - controlo de apetite, resposta do sistema nervoso autónomo à ingestão alimentar, regulação da glicemia, etc. Ou alterações na microbiota que ninguém sabe ainda no que resultam. Mas quando olhamos para a evidência e emitimos recomendações, não devemos focar a árvore como se de toda a floresta se tratasse Mecanismos isolados não podem ser confundidos com desfechos. Os ensaios clínicos mostram o seu efeito? Não..


De facto, os estudos de intervenção controlados em humanos não sugerem um efeito prejudicial dos adoçantes artificiais. Na verdade, a própria publicação da OMS nos diz que os ensaios clínicos controlados revelam uma tendência clara para um efeito benéfico no peso, neutro em parâmetros da homeostase glicémica, e de redução do aporte calórico total da dieta. Claro que também não são evidência indubitável. Como disse, o efeito de um nutriente ou aditivo em parâmetros de saúde, por exemplo o risco de desenvolver diabetes, manifesta-se ao longo de muitos anos, e o efeito é muito pequeno em magnitude. Seriam precisos estudos proibitivamente longos, com um número de indivíduos enorme. Simplesmente não são possíveis de realizar. O que nos resta? Olhar para trás e tentar encontrar associações entre um comportamento, ingerir edulcorantes com frequência, e um desfecho, desenvolver doença. O problema? Estabelecer a relação causa-efeito, por mais que se tente anular as variáveis de confundimento. Quem já tem doença ou está em risco dela deverá também ter um maior consumo como forma de a controlar, ou a percepção de "não-calórico" pode contribuir para um consumo excessivo associado a outros comportamentos de risco. Uma relação inversa é também plausível.


Para estabelecer causalidade a partir de estudos observacionais temos de seguir alguns critérios. São estes 1) força de associação, que é tanto maior quanto maior o risco relativo, aumentando a confiança numa relação causal, 2) consistência e coerência, com reprodução em várias amostras e por diferentes investigadores, 3) temporalidade (o efeito vem depois da causa), 4) gradiente biológico (a associação é maior quanto maior a exposição), e 5) plausibilidade, uma base credível para a associação ou experimentação para comprovar a hipótese. Sem satisfazer estes critérios podemos fazer associações com o que nos apetecer, meros artefactos de duas variáveis que seguem uma tendência comum. O que temos em relação aos edulcorantes?


Por exemplo, um estudo Europeu (EPIC) que avaliou a associação entre o consumo de bebidas adoçadas e a diabetes revela um risco relativo de 1,9 para quem bebe mais do que uma dose por dia. Risco esse que desce para 1,1 quando se ajusta para o IMC e aporte energético. Ora o que significa isto? Apesar de dar uma bela manchete, "o consumo diário de bebidas adoçadas artificialmente aumenta o risco de diabetes em 90%", não é tão dramático assim. O risco relativo trata-se de um aumento sobre o risco absoluto, o real. Ora, um homem com menos de 45 anos, sem historial familiar de diabetes, que se exercita, não fuma, com um perímetro abdominal inferior a 102 cm e IMC normal, tem um risco de desenvolver diabetes em 5 anos inferior a 1%. Ora, se beber refrigerantes adoçados artificialmente todos os dias o risco aumenta sim, mas para 1,1%. Riscos relativos pequenos revelam associações frágeis. Nem o estatisticamente significativo é sempre clinicamente relevante.


O que a recomendação da OMS também não faz é uma ponderação de risco. Se a substituição de certos alimentos por alternativas adoçadas artificialmente levar a uma redução do aporte energético total e perda de peso, como sugerem os ensaios clínicos que eles próprios analisaram, o beneficio será maior do que o prejuízo. Se estes produtos permitirem uma melhor adesão à dieta, o balanço final será certamente favorável. Podemos ser puristas e pedir para substituir a coca-cola por um chá de ervas biológicas com água alcalina filtrada em carvão activado. Sugerir a alguém uma dieta perfeita e imaculada desses químicos do capeta, privando-o do mais pequeno prazer que a dieta pode ter. Tudo para anular esse 0,1% a mais de risco absoluto que alegadamente teria ao ingerir adoçantes com alguma frequência. Eu não estou disposto, nem existe evidência forte o suficiente para sujeitar alguém a isso. Quem recomenda em alguns momentos alimentos com edulcorantes continuará a dormir descansado à noite. Cada um escolhe os seus "venenos". Não usas adoçantes, tudo certo e palmas para isso, mas se calhar não treinas ou não dormes 8 h por

noite em horários regulares. Vives numa cidade com o ar poluído? Muda-te para o campo. Lamento, mas isso terá um impacto bem maior do que ingerir edulcorantes com alguma frequência. Tudo na Natureza é química, nem tudo o que é artificial é mau. Nem tudo o que a OMS diz deve ser levado à letra sem crítica.

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