Podemos definir doping como a utilização de substâncias ou métodos proibidos de forma a melhorar o desempenho. Substâncias essas que chamamos de ergogénios. Falamos de esteroides anabolizantes, hormona do crescimento, eritropoetina (EPO), narcóticos, estimulantes, entre outros. Anualmente a Agência Mundial Anti-Dopagem (WADA) publica uma extensa lista de agentes dopantes ilícitos banidos do desporto de alta competição, sendo alguns deles fármacos controlados ou substâncias de uso recreativo criminalmente punido. A palavra doping vem do holandês doop, que descrevia um ritual dos guerreiros Zulu antes da batalha. Bebiam uma mistura alcoólica que acreditavam dar vigor e força na guerra. Mais tarde a palavra foi importada pelos ingleses para descrever práticas ilegais nas corridas de cavalos para melhorar o desempenho dos animais. Daqui até ao que significa hoje foi um pequeno passo. A primeira definição oficial de doping remonta a 1963, “...o uso de substâncias ou mediadores fisiológicos, que normalmente não estão presentes no corpo humano, introduzidos como uma ajuda externa para aumentar a performance atlética em competição”.
Desde sempre o Homem procurou estratégias várias para melhorar o desempenho, no desporto e não só. Atletas na época clássica, os primórdios dos Jogos Olímpicos na Grécia, recorriam a produtos que acreditavam potenciar o rendimento. Falo de infusões de variadas ervas, mas também a ingestão de testículos de carneiro e boi para “absorver a virilidade” desses animais. Textos ancestrais Indianos falam-nos também da recomendação de ingerir testículos para tratamento da impotência. Interessante notar que, apesar de nada saberem sobre a testosterona, já associavam os testículos à virilidade, massa muscular e desempenho atlético. O que na verdade era observável à época pela falta deles nos eunucos, homens castrados que na antiguidade serviam como guardas do harém e importantes conselheiros da regência.
Na Grécia, Roma, e China castravam-se rapazes pré-pubertários, que se sujeitavam voluntariamente ou eram forçados pela própria família como forma de escapar à pobreza e fome. Os eunucos eram uma classe de prestígio que vivia em proximidade da nobreza. Rapazes que davam em homens altos mas gordos, de grande fragilidade muscular, uma voz afeminada, sem apetite sexual ou forma de o consumar. Na verdade, os eunucos são a expressão máxima da “masculinidade” numa sociedade patriarcal. Quem melhor para guardar o harém do Imperador do que alguém a quem os órgãos sexuais foram removidos? Surgem por ciúme e medo da traição, mas eram homens com grande capacidade de pensamento estratégico e calculista. Muitas vezes o comportamento viril, competitivo e impetuoso que a testosterona favorece dá mau resultado e traduz-se em decisões erradas. Os eunucos não padeciam de tal problema.
Também a Santa Sé tomou vantagem da castração para ocupar as linhas no coro da Igreja no séc. XVI. Como não permitiam que as mulheres fizessem parte, atingir as notas mais agudas de uma soprano era praticamente impossível com as cordas vocais espessadas e alongadas de um homem. Surgem assim os Castrati, rapazes pré-pubertários castrados, com uma voz que atingia tons que só as mulheres poderiam, com uma “potência” única.
Pouco se avançou sobre o papel dos testículos e suas secreções até 1889, altura em que o médico anatomista Charles-Édouard Brown-Séquard, professor em Harvard, administrou nele próprio um extrato testicular de cão e boi a que chamou “elixir do rejuvenescimento”. Relatou na conceituada revista The Lancet e várias conferências médicas um aumento do vigor e bem-estar, mas de efeito transitório. Claro que os seus pares muito gozaram com ele e tentaram ridicularizar o seu trabalho. Afinal de contas estava a injectar nele próprio um extrato de testículo de cão. Nada se sabia até então da presença de androgénios nos testículos, e muito menos acerca dos seus efeitos no homem. Brown-Sequard era um prestigiado anatomista que conta com mais de 500 artigos publicados em seu nome. Ficou obcecado com a falta de produtividade e perda de capacidades à medida que envelhecia, procurando incessantemente uma “cura” para a perda de vitalidade. O “elixir de rejuvenescimento”, o qual passou a tomar regularmente. Podemos dizer que foi o pai da terapia de reposição hormonal e do “anti-aging”.
Foi apenas em 1931 que a androsterona, um derivado da testosterona, foi isolada de uma amostra de urina de polícias. Em 1935 foi então a vez da testosterona, isolada primeiramente de um estrato testicular de boi por Ernst Laqueur, que fundou a companhia Organon ao lado de um matadouro, hoje uma subsidiária da Merck. Foram necessários centenas de quilos de testículos que o matadouro fornecia. Nesse mesmo ano, Adolf Butenandt da Schering e Leopold Ruzicka da Ciba, duas companhias farmacêuticas, sintetizaram quimicamente a testosterona a partir do colesterol. Trabalho que lhes valeria mais tarde o prémio Nobel, em 1937.
A síntese química da testosterona permitiu o estudo mais rigoroso dos seus efeitos em humanos. Desde cedo se perceberam ganhos de massa magra e aumento da agressividade. Outros efeitos foram sendo descritos e caracterizados pela sua natureza anabólica, no aumento da massa magra e óssea, ou androgénica, relacionados com os caracteres sexuais masculinos e comportamentais. Efeitos esses ainda hoje sujeitos a estudo e acesso debate, particularmente as suas implicações no desenvolvimento e comportamento dos homens e mulheres.
As aplicações terapêuticas da testosterona eram evidentes. Não só no tratamento do hipogonadismo e puberdade atrasada em jovens adolescentes, mas também em casos de caquexia, doentes renais, queimados, entre outros. Situações em que havia interesse em isolar aquilo que são os efeitos anabólicos da testosterona, e reduzir o seu impacto androgénico que nestes casos se manifestaria como um colateral. Queriam ganhar massa magra sem pelos ou acne. As drogas derivadas de testosterona foram então aparecendo, os esteroides anabolizantes, com menor rácio de actividade androgénica/anabólica. Rácio esse ainda hoje utilizado para caracterizar estas drogas e medido pela relação entre a percentagem de aumento de volume da próstata, um tecido androgénico, e do músculo esquelético em ratinhos.
A síntese química da testosterona e dos primeiros esteroides anabolizantes ocorreu na Alemanha de Hitler. Alguns relatos sugerem que foram testados e usados na II Guerra Mundial pelo exército Nazi como forma de aumentar a agressividade e poderio físico dos seus soldados. A propaganda falava de um überman, uma espécie de super-homem exemplar da raça Ariana, com atributos que poderíamos atribuir aos anabolizantes. De qualquer forma, não existe nenhuma evidência factual que comprove a utilização deliberada e promovida pelo Estado de esteroides anabolizantes em soldados Nazis. Pode não ser mais do que um mito com origem em Wade no seu artido de 1972 na revista Science.
Anabolizantes e doping no desporto
O primeiro autor a sugerir que a testosterona e seus derivados poderiam ter um impacto positivo no desempenho atlético foi Paul de Kruif em 1945 no seu livro “The Male Hormone”.
“...seria interessante ver o poder produtivo de uma indústria ou grupo profissional de atletas que tentassem sistematicamente carregar-se com testosterona”
Paul de Kruif era um microbiologista que relatou detalhadamente a sua experiência com o uso continuado de testosterona. Sentia-se mais jovem, forte e viril, à semelhança do que Brown-Sequard descreveu décadas antes. O “The Male Hormone” é um relato e ensaio sobre os efeitos da terapia de substituição hormonal. Mas na verdade, apesar de historicamente a ideia do doping no desporto ser atribuída a de Kruif, já em 1939 o médico Ove Bøje escrevia com ironia, não se referindo especificamente à testosterona, recentemente descoberta:
“Nos desportos em que os animais tomam parte, o uso de estimulantes era tão comum que alguns países introduziram legislação para o proibir, com base na crueldade sobre esses animais. Semelhante atenção deveria ser dada a seres humanos que participam em eventos desportivos”
Pensa-se que a União Soviética tenha sido pioneira na utilização de esteroides anabolizantes nos seus atletas, com relatos que remontam ao início dos anos 50. Apesar dos rumores do uso de testosterona na preparação dos Jogos Olímpicos de Berlim em 1936 pelos alemães, mas sem provas documentadas. Os russos dominavam os campeonatos de halterofilismo e ninguém convencia Bob Hoffman, treinador norte-americano, de que essa hegemonia era devida a melhores metodologias de treino. Só nos Jogos Olímpicos de Viena em 1952 foram 7 medalhas para os russos. Em 1954, durante o campeonato do Mundo, o médico da equipa americana, John Ziegler, também ele um atleta amador de halterofilismo, levou um dos treinadores soviéticos a uma taberna local para “confraternizar”. Depois de o embebedar teve a confissão esperada. Os atletas russos estavam a ser “melhorados” com testosterona e outras substâncias que o treinador não soube descrever.
A revelação mudou a vida de Ziegler, que experimentou ele próprio testosterona e dedicou-se à farmacologia. Poucos anos depois sintetizou a metandrostenalona, patente que vendeu à Ciba e que surgiu no mercado pelo nome de Dianabol (1955) na forma de pequenos comprimidos hezagonais cor-de-rosa. O Dianabol tornou-se popular e o seu uso disseminado entre os atletas, bem como de outros esteroides anabolizantes que já tinham sido criados por essa altura. Um dos colegas de Ziegler, Alvin Roy, foi contratado pelos San Diego Chargers e disponibilizava taças com comprimidos de Dianabol aos atletas às refeições. Os resultados foram notórios. Jogadores mais fortes e mais agressivos. A prática não tardou a espalhar-se a outras equipas de forma descontrolada.
Alguns jogadores começaram a relatar efeitos secundários desconhecidos até então, com enfase na atrofia testicular. O tamanho dos testículos reduzia significativamente e isso assustava-os. O efeito dramático dos esteroides anabolizantes estava a levar ao abuso por parte de atletas altamente competitivos e com personalidades obsessivas. Os protocolos de Ziegler com 5-10 mg de Dianabol por dia foram deixados de lado, e doses elevadas de 50-60 mg normalizaram-se. Ziegler tornou-se mais tarde um acérrimo opositor do uso de anabolizantes no desporto, quando foi ele o principal responsável pela sua introdução nos EUA.
Os atletas de alta competição são uma população particular em que a vontade de vencer a todo o custo leva facilmente a comportamentos que colocam em risco a própria saúde. Nos anos 80, Bob Goldman questionou anonimamente um grupo de atletas de elite com uma simples pergunta – “Se lhe desse uma pilula que o faria vencer todas as competições do ano, mas que o mataria no ano seguinte, tomaria?”. Cerca de 50% respondeu que sim, que estaria disposto a pagar o preço mais alto pela glória e um lugar na História. Mais tarde a mesma pergunta foi feita a 120 desportistas amadores na Austrália, e só um respondeu afirmativamente.
Autênticos programas de doping em massa de atletas foram tornados públicos ao longo dos anos, institucionais e também governamentais. Depois da reunificação da Alemanha em 1990, a ex-atleta Brigitte Berendonk e o professor Werner Franke obtiveram documentos científicos secretos que revelavam um programa de doping patrocinado pelo Estado (RDA), que incluía teses de doutoramento e protocolos detalhados de doping para atletas, e para evasão ao controlo anti-doping. Milhares de atletas foram “tratados” com esteroides anabolizantes, com enfase em mulheres e adolescentes. Cerca de 9 000 de acordo com os relatos. Os atletas da RDA deram-se particularmente bem entre 1972 e 1990 nos eventos internacionais, e mais tarde percebeu-se porquê. Só em 1976 a equipa de natação feminina ganhou 11 medalhas de outro das 13 possíveis. Num regime autoritário como o da RDA, os atletas não tinham escolha e alguns confessaram mais tarde como a “proposta” lhes foi feita. Ou tomas, ou morres.
Convém salientar que a utilização de esteroides anabolizantes não era proibida inicialmente. Na verdade, até aos anos 60 eram mais vistos como “suplementos alimentares” do que drogas, visão que só começou a mudar nos anos 70. Foram banidos formalmente pela comissão médica do Comité Olímpico Internacional, e o controlo anti-doping instituído em 1976 depois de uma série de positivos em amostras aleatórias de atletas já após a proibição. Estudos retrospectivos realizados em 1972 sugerem que 78% dos corredores usavam ou usaram esteroides anabolizantes.
A primeira lista de drogas proibidas no desporto veio da Comissão Médica do Comité Olímpico Internacional em 1967, para os jogos de 1968. Mas não incluía esteroides anabolizantes, simplesmente porque não existia tecnologia para os detectar na altura. Apenas em 1973 isso se tornou possível, mas curiosamente não para a testosterona. Não existia forma de a detectar nem distinguir da que era produzida naturalmente no corpo. O que aconteceu apenas em 1983 quando Manfred Donike desenvolveu um método que avaliava o rácio T/E na urina e que foi implementado nos Jogos Pan Americanos na Venezuela. O rácio T/E mede a relação entre a testosterona e epitestosterona, duas moléculas isoméricas muito parecidas que diferem apenas na posição de um grupo -OH no mesmo Carbono, e que são produzidas no corpo num rácio de 1:1. Alterações a este rácio indicam administração exógena, e estabeleceu-se o 6:1 como valor de corte para um positivo de doping. O simples anúncio da implementação do teste fez com que dezenas de atletas ficassem subitamente doentes e não participassem nos Jogos Pan Americanos de 1983. Um vírus que se espalhou com a notícia.
Apesar da proibição do doping no desporto e moralidade da coisa, todos sabemos que é uma realidade. Estima-se que entre 30% a 50% dos atletas tenham usado substâncias elícitas em algum momento da sua carreira. Em 2003, numa entrevista à Sports Illustrated, o pitcher David Wells diz que estimava a prevalência de doping na Major League Baseball em 25-40%. Número que Jose Conseco eleva para 80% no seu livro Juiced. A questão não é usar. É serem apanhados.
O controlo anti-doping não é infalível e escândalos como o da Federação Russa em 2015 seriam de esperar. Um programa estatal que veio a público após denuncias de atletas insatisfeitos, mas em nada inocentes. Grigory Rodchenkov era director do laboratório de controlo anti-dopagem russo, creditado pela WADA e um dos mais avançados do Mundo com equipamento de ponta. Hoje vive exilado nos EUA sob o programa de protecção de testemunhas após revelar como a Rússia ludibriou durante anos todo um sistema de controlo que se considerava pouco falível, para não dizer inviolável. Com trocas de amostras de urina colhidas por oficiais corruptos, controlos “surpresa” que eram anunciados dois meses antes, e análises positivas não reportadas segundo o protocolo, ou simplesmente apagadas da História.
O programa de doping massivo da Federação Russa viu o seu auge nos Jogos Olímpicos de Inverno em Sochi, Rússia, no ano de 2014. Após o desaire de Vancouver, Putin não ia deixar passar esta oportunidade de mostrar o poderio dos seus atletas no seu próprio território, patrocinando uma das maiores fraudes de sempre do desporto. Putin é ele próprio um atleta e fanático pelo desporto. Com a ajuda de agentes do FSB, herdeiro do KGB, foram trocadas dezenas de amostras de urina de atletas dopados por urina limpa colhida antes. Os recipientes da colheita eram tidos como invioláveis após selados pelo oficial da WADA. E aqui entra o FSB, que encontrou uma forma de os abrir e substituir o conteúdo durante a noite. Ninguém deu por nada, e tudo foi feito nas barbas dos oficiais do Comité Olímpico Internacional. Os Jogos correram tão bem que os historiadores dizem ter elevado o orgulho nacional a legitimar internamente a invasão da Crimeia nesse mesmo ano. É tudo nosso.
Quando o escândalo veio a público no ano seguinte, as autoridades russas tentaram lavar as mãos como podiam. Culpando Rodchenkov e outras figuras menores, que se tornaram um risco para o Estado pelo que sabiam e provas que reuniam. Rodchenkov conseguiu fugir para os EUA com provas da operação Sochi Resultat como lhe chamaram, mas o director da agência russa anti-doping, a RUSADA, não teve a mesma sorte. Tanto ele como o seu antecessor morreram misteriosamente no espaço de semanas, ao bom estilo Soviético. Sem nenhuma explicação para um ataque cardíaco súbito num homem nos seus 50 anos, sem qualquer histórico de doença e a quem foi apenas feita uma autópsia proforma que encerrou o caso por ali. Coisas que acontecem naqueles lados.
Muito mediático foi também o caso Balco em 2002 nos EUA, que levou à sansão de atletas de elite como Marion Jones e Tim Montgomery. Um treinador de atletismo, que mais tarde se veio a saber ter sido treinador de Marion Jones, enviou uma seringa com uma substância desconhecida para a entidade anti-dopagem norte-americana, identificada como tetrahidrogestrinona (THG). Um esteroide anabolizante que era indetectável até então, sintetizado por Patrick Arnold, um químico funcionário da Balco de Vitor Conte. A novidade da substância e a via de administração típica, bucal ou transdérmica, impediu a detecção até a seringa ter sido enviada a Don Catlin, director do laboratório creditado de Los Angels. Só em 2007 Marion Jones confessou ter usado doping, numa entrevista bem emotiva, e foi detida por 6 meses. Não pelo uso, mas pelo perjúrio ao ter mentido aos investigadores.
A administração bucal e transdérmica reduz a presença dos metabolitos secundários de longa duração, detectados por períodos superiores a 6 meses. Nos jogos de Sochi, o mesmo Rodchenkov desenvolveu um cocktail de anabolizantes solubilizados em Whisky que os atletas tomavam durante a competição. Metenolona, oxandrolona e trenbolona solubilizados em Chivas Regal, a que chamaram de “Duchess” e que lhes permitia uma recuperação mais rápida entre eventos. O doping pré-competição era comum e disseminado, mas durante o evento foi uma novidade pelos riscos da sua detecção. Em casa os atletas russos estavam à vontade. Na fase de preparação apenas é necessário ter um conhecimento profundo do tempo de vida das substâncias e realizar testagens antes da competição para garantir um negativo. E ser avisado antecipadamente dos controlos surpresa que possam acontecer por oficiais corruptos da WADA. Hoje em dia o passaporte biológico veio dificultar um pouco a vida dos atletas, mas nada que não se consiga contornar com um bom “witch doctor” como são apelidados.
Das quase 200 000 amostras analisadas pela WADA anualmente, cerca de 2% contêm substâncias proibidas. Desses 2%, 45% são esteroides anabolizantes. Dados que obviamente subestimam uma realidade obscura do desporto. Um Mundo em que o parecer é mais importante do que o ser, e onde a política governa. Ninguém quer positivos. Não é bom para o negócio. Quer queiramos quer não, o doping faz parte do desporto. Como o próprio Pierre de Coubertin disse, “pai” do movimento Olímpico, apenas os atletas amadores competem, na visão “limpa” que tinha do desporto. Quando outros interesses se instalam, nomeadamente financeiros ou a reputação de um Estado, abre-se o espaço para a batota.
Apesar do doping ser transversal ao desporto, os culturistas são os poster-boys e bodes expiatórios do uso de anabolizantes. Os estudos falam-nos de uma prevalência de 55%, semelhante à que encontramos em powerlifters mas que poderá estar subestimada. A utilização é uma realidade bem evidente no nível de massa muscular e gordura que apresentam em determinados momentos do ano, resultado também de doses massivas e combinação de várias drogas. Os primeiros relatos da utilização recreativa para fins estéticos remonta a Venice Beach, Califórnia, nos anos 50, a Meca e berço do culturismo. Além da testosterona, já outras drogas como o Dianabol estavam disponíveis que se acreditava terem um potencial mais interessante para objectivos estéticos. Como disse William Taylor, um historiador da medicina, “nas praias do Sul da Califórnia os bodybuilders usavam T-shirts que diziam, ‘Dianabol, o pequeno-almoço dos campeões’”. Tal e qual.
Arnold Schwarzenegger é, ou foi, provavelmente o culturista mais famoso da história e que marcou uma época. Admitiu ter usado “pequenas quantidades” de Dianabol no seu tempo, o que não lhe tira o mérito do que conseguiu. Apesar do eufemismo do “pequenas”, admitir o uso de anabolizantes pelos “role-models” é um dever. Deixar claro que se trata de um corpo virtualmente inatingível de forma natural mata as falsas expectativas, desilusões e fracassos à procura de algo que é inatingível. Nada de bom vem de acreditar ser possível um corpo de culturista só a comer frango, arroz, e a treinar todos os dias. A grande mentira do fitness. Nem tudo é possível só com esforço e dedicação.
A evolução do físico dos atletas é clara ao longo das décadas, e a diferença não deve ser explicada por melhores metodologias de treino, mais empenho ou genética. O físico de Steve Reeves marcou a década de 50, e a diferença comparativamente aos atletas dos finais de 60 e anos 70 é abissal. Arnold Schwarzenegger dominou os anos 70, com um físico incomparavelmente mais musculado e definido do que Reeves. Mas nos anos 90 deu-se outro salto marcado por Dorian Yates, talvez o primeiro grande “monstro” do culturismo. Admitiu ter usado doses de testosterona na ordem das 1000 mg por semana, nandrolona e Dianabol, bem como hormona do crescimento. E na década seguinte aparecem Ronnie Coleman e Jay Cutler, dois gigantes que definiram um padrão inumano do desporto. Na reforma, Coleman está muito debilitado e Cutler insurge-se contra o que é necessário para manter um tamanho como apresentava em competição. Não é saudável. Na última década temos vivido a “Revolução do Fitness”. A IFBB acaba o culturismo feminino e categorias como o Bikini Fitness e Wellness ganham adeptos. Nos homens, aparecem atletas em Men’s Physique como cogumelos no bosque. Padrões mais equilibrados, mas que nem assim abdicam do uso massivo de drogas.
Deixando a polémica no ar, mesmo em Portugal é impossível um atleta natural chegar ao pódio numa competição de Men’s Physique ou outra categoria actual. O nível está alto, e a utilização de anabolizantes e outras drogas é irresistível para os atletas. Nas mulheres, apesar do doping ser comum, é possível ser competitiva sem drogas embora isso seja uma coisa muito rara. O uso está normalizado e quem compete sabe para o que vai. Não faço juízos de valor quanto à utilização de anabolizantes no fitness competitivo e a decisão fica exclusivamente na esfera pessoal. Este desporto está assente em drogas, e quem disser o contrário está a ser hipócrita.
Os insurgentes criaram o culturismo natural, com federações que alegadamente testam os atletas em prova para a presença de agentes dopantes. A própria IFBB (International Federation of Bodybuilding) já tentou, e o sonho de tornar o culturismo um desporto Olímpico levará a que o tente novamente, mas não vai correr bem. Perceba-se que no culturismo natural, estar limpo não significa não ter usado substâncias proibidas. Significa apenas que o teste dá negativo no dia da prova, sem testes surpresa na fase de preparação. O que aconteceria sob alçada da WADA. Ora, garantir um negativo usando doping em preparação é fácil e segue protocolos optimizados durante décadas noutros desportos. Conhecendo o tempo de vida no organismo de cada substância, diluindo os metabolitos secundários na urina, testando-se previamente, ou trocando a urina quando os oficiais não a veem a entrar no frasco, consegue-se usar drogas em preparação sem ser apanhado na prova. Há décadas que os atletas fazem isto, numa enorme variedade de desportos.
Uma questão que se levanta é a moralidade de ilegalizar o doping no desporto em geral, quando todos sabemos que é uma realidade incontornável e assim continuará a ser. Os atletas deparam-se com o “dilema do prisioneiro”. As potenciais vantagens superam o risco de serem apanhados, já que apenas uma pequena percentagem o é. E eles sabem disso. O doping é quase irresistível para os atletas da alta competição que fazem do desporto a sua vida. Com a legalização das drogas haveria menos hipocrisia, mas a mensagem seria muito perversa. Os atletas são exemplos para a sociedade. Se a batota fosse permitida seria o desvirtuar da competição e assumir que vale tudo. Ganhar a qualquer custo, legitimando a opção de colocar em risco a própria saúde.
Estima-se que os atletas de alta-competição representem apenas cerca de 20-30% dos utilizadores de esteroides anabolizantes. O seu uso é comum também entre forças policiais e militares operativas. Estudos de prevalência em militares nos EUA apontam valores entre 1,5 e 2,5%, mas que num inquérito anónimo de 2009 a operativos antes da partida para o Médio-Oriente revela um aumento para 50%. Em termos absolutos, o uso de anabolizantes ocorre principalmente para fins meramente recreativos e estéticos. No meio do fitness. Os efeitos podem ser dramáticos na composição corporal, força, sensação de bem-estar, energia, líbido, mas com riscos também eles reconhecidos e bem caracterizados.
Prevalência de utilização
É difícil estimar a prevalência da utilização de esteroides anabolizantes entre entusiastas do fitness, ou mesmo na população em geral. Estudos com populações ocidentais que poderíamos comparar a Portugal, como os EUA ou Suécia, falam-nos de uma prevalência global de 1-5% nos homens. Nas mulheres a prevalência é menor, embora em crescimento. Entre os frequentadores de ginásios e praticantes, a prevalência sobe para cerca de 10-20%. Cerca de 20% dos frequentadores de ginásio já, em algum momento das suas vidas, tomou algum tipo de esteroide anabolizante. As drogas mais comuns que se destacam são a testosterona e a oxandrolona (Anavar), uma substância que é tida no meio como menos nociva. No Brasil a prevalência de utilização em frequentadores de academias é maior, país onde a utilização de substâncias dopantes se massificou, e foi até normalizada com um aval médico eticamente questionável.
A realidade brasileira é distinta da portuguesa. Um exemplo que o ilustra bem foi a prescrição de um manipulado por parte de um nutrólogo brasileiro que me chegou às mãos. De um paciente que me dizia estar a tomar um multivitamínico para aumentar o vigor e força. Entre uma longa lista de vitaminas e minerais, constavam “5 mg de oxandrolona” como se de um composto natural e de menor importância se tratasse. Na mesma linha começamos a importar a terapia de reposição de testosterona (TRT) sem qualquer indicação clínica. É preocupante ver como homens nos seus 20 e 30 anos acham que precisam de reposição de testosterona (TRT) sem indícios de alguma disfunção no eixo hormonal. Mas mascarado por alegados benefícios na sua saúde e bem-estar, o que querem na verdade é usufruir dos efeitos da testosterona a nível da composição corporal. “Jardar” com prescrição médica, e com menor carga moral. Vamos chamar as coisas pelos nomes. Não é terapia nenhuma, nem 250 mg de enantato de testosterona por semana é uma dose de reposição.
O papel dos médicos
O que discutimos leva-nos a uma questão mais complexa que é posição médica perante este fenómeno. Quem quer usar esteroides anabolizantes para fins estéticos deve poder usufruir de acompanhamento médico para que o possa fazer com o menor risco possível? Um médico sério não poderá compactuar com o uso recreativo de esteroides anabolizantes. Os riscos não são compensados com qualquer benefício clínico, nem existe indicação terapêutica para a sua prescrição. Em maior ou menor grau, se alguém quer colocar em risco a sua saúde sem um benefício clínico deverá fazê-lo à sua responsabilidade. Os esteroides anabolizantes são fármacos, e como todos os fármacos acarretam riscos. Esta é a única posição que me parece encaixar no código deontológico de um médico que ao prescrever anabolizantes para fins recreativos incorre de má conduta. Sem um benefício terapêutico ou preventivo, os esteroides anabolizantes não podem nem devem ser prescritos.
Outra coisa bem distinta é o juízo moral que os clínicos fazem a quem lhes recorre para tratamento de sequelas. Revoltante e indigno da profissão. Vezes sem conta me deparei com pessoas que se sentiram humilhadas no consultório médico, e alguns deles saindo até com a recusa de tratamento pós-ciclo. É verdade que a grande maioria dos médicos, incluindo especialistas em endocrinologia, não sabem o que fazer nestes casos. A ignorância assusta e leva a uma atitude defensiva. Mas o papel do médico é tratar e não ajuizar. Nem sequer opinar se a pessoa fez bem ou mal. Uma atitude reprovadora e de julgamento só afasta e alimenta a vergonha que estes pacientes têm em procurar um médico. Abre espaço para que outras pessoas menos competentes ocupem o lugar que lhes deveria estar reservado.
Os utilizadores de esteroides anabolizantes não dão crédito aos médicos como conhecedores do tema, optando por se informar junto de treinadores, culturistas e na própria internet. Uma pesquisa nos EUA mostra que 56% dos utilizadores nunca revelaram ao seu médico o uso de anabolizantes pelo receio de julgamento, desconfiança na capacidade técnica, ou medo de repercussões legais. E dos que reportaram o uso, 55% diz ter-se sentido discriminado e desrespeitado. Dados muito preocupantes e é urgente mudar esta atitude por parte da comunidade médica, garantindo formação adequada para esses profissionais sobre os esteroides anabolizantes.
A terapia hormonal para rejuvenescimento, ou anti-aging como lhe chamam, tem ganho adeptos nos últimos anos embora a sua origem remonte às experiências de Brown-Séquard em 1889 com extratos testiculares de animais. Tanto ele como mais tarde Paul de Kruif relataram efeitos idênticos na melhoria do bem-estar, vitalidade, capacidade de trabalho, etc. Brown-Séquard estava já nos seus 70, em declínio e inconformado. O anti-aging surge como uma terapêutica preventiva que permite mitigar as consequências do envelhecimento, em parte associadas ao declínio hormonal. Em média, um homem ocidental vê a sua testosterona diminuir 1,3% ao ano a partir dos 40 anos de idade. Se é causa ou consequência ninguém sabe. Mas sabe-se que os níveis em homens de populações não-ocidentalizadas não observam a mesma tendência decrescente, embora sejam tendencialmente mais baixos. O declínio será uma consequência do estilo de vida ou da biologia? Talvez um pouco de ambos.
Apesar da medicina convencional não ver de bons olhos esta prática pouco “evidence-based”, a verdade é que está a ganhar terreno. Se os bons médicos não ocuparem este espaço, será deixado para “os picaretas” como se diz no Brasil. Talvez seja altura para olhar a medicina de uma forma mais preventiva, na melhoria da qualidade de vida, e não apenas de cura ou alívio de sintomas quando a doença se instala. O que não significa receitar hormonas a torto e a direito, como infelizmente vejo ser prática comum entre alguns profissionais que abraçaram o anti-aging, uma área muito apetecível financeiramente. Pelo cliente tipo que os procura, valor da consulta, e comissões ou benefícios sobre os exames prescritos que muitas vezes não servem para nada. Mais regulação nesta área precisa-se, mas apesar de alguns médicos “refilarem” com as más práticas, a classe dispõe-se a fazer muito pouco.
O utilizador típico
Podemos traçar um perfil do utilizador de esteroides anabolizantes com base na informação disponível. A idade mais frequente para o início da utilização é entre os 22 e os 30 anos. Na verdade, a grande maioria inicia o uso antes dos 30 anos (>70%), e menos de 10% antes dos 18 anos. A motivação primária é a aparência física (~80%), seguida dos ganhos de força. Muitos homens reportam ainda problemas de autoestima e imagem corporal, existindo uma associação entre os anabolizantes e distúrbios alimentares ou dismorfismos corporais como a vigorexia ou anorexia reversa como também lhe chamam. Todo o tamanho e músculo não chega.
Falamos muito dos estereótipos de beleza nas mulheres, mas não são apenas elas que desde cedo recebem inputs do que é socialmente aceite e valorizado. Também os rapazes desde criança são ensinados subtilmente a associar corpos musculados à virilidade, heroísmo, sucesso e estatuto. Exige-se uma Barbie com proporções corporais mais realistas. Mas não vejo ninguém a queixar-se de que o Action Man, o He-Man ou as Tartarugas Ninja são demasiado musculados. Os rapazes não são menos permeáveis à influência destes estereótipos no seu desenvolvimento como adolescentes e adultos. Vivemos ainda numa sociedade em que os homens não sofrem dessas coisas. Em que é um sinal de fraqueza. Mas os distúrbios de auto-imagem associam-se a um risco aumentado de recurso a esteroides anabolizantes, problemáticas que no fundo têm uma base social bem patente. A associação de um modelo de corpo a estatuto. Corpo esse que nem sempre é obra da natureza, mas por vezes também “quimicamente melhorado”.
Acesso aos esteroides anabolizantes
O acesso aos esteroides anabolizantes é fácil no mercado negro, e são relativamente baratos o que generaliza o acesso. A matéria-prima produzida na Índia, Leste Europeu, e principalmente na China chega à Europa com relativa facilidade. Até 2008 era uma festa, quando o governo chinês foi pressionado para acabar com o buffet de envio de anabolizantes em bruto para o ocidente. Se queriam entrar no grupo e organizar os Jogos Olímpicos, tinham de jogar pelas regras. A China apertou a legislação e ilegalizou a exportação de esteroides anabolizantes. Que não parou obviamente, mas sofreu um rude golpe. Os esteroides chegavam em bruto, um pó oleoso ou gel viscoso como no caso da boldenona, dentro de embalagens metalizadas e codificadas para ludibriar a alfândega, incapaz de dar conta do recado.
Já no destino se converte no produto final para aplicação intra-muscular ou administração oral em laboratórios clandestinos, que recorrem a um embalamento pomposo e números de série fictícios para credibilizar o produto. Mas na verdade trata-se de um pó vindo da China e que pode ter sido convertido numa qualquer cave, com mínimas condições de assepsia. Não é preciso mais do que um solvente, um agente bactericida, e um veículo oleoso, aquecer tudo para solubilizar, e passar por um microfiltro. O resto é embalamento em vials ou ampolas esterilizadas. Passos que nem sempre se executam de forma rigorosa, e depois acontecem casos como o do actor Ângelo Rodrigues. Uma infecção e septicemia, potencialmente letal. Não são efeitos da droga em si, mas das condições pouco higiénicas em que foi manipulada.
As estatísticas revelam que mais de 60% dos utilizadores adquirem os esteroides anabolizantes pela Internet, sem garantia de segurança e autenticidade do produto. Poucos são os que usam substâncias de grau farmacêutico autêntico, e menos de 15% os obtém por prescrição médica. Um problema ético que já focámos, mas que pelo menos dá garantias quanto à qualidade das drogas que são administradas. A grande maioria dos produtos administrados provêm de laboratórios underground sem qualquer controlo de qualidade.
Os anabolizantes são mesmo eficazes?
Há quem desvalorize o impacto dos esteroides anabolizantes no físico e desempenho. Por má-fé ou só ignorância. Ou talvez para se justificarem a si próprios. Sim o efeito é dramático e não são só um caminho mais rápido para atingir um objectivo. São uma forma de atingir objectivos que não seriam atingidos por outra via. Não é por o indivíduo X ter um físico melhor do que Y. Mas comparando com ele próprio, X nunca teria atingido naturalmente aquilo que pode conseguir com os esteroides anabolizantes. Tão simples quanto isto. Os ganhos de massa magra são óbvios, e apesar do treino os potenciar muito, eles ocorrem de forma independente. Ganhos esses que vêm acompanhados de um aumento da capacidade de produção de força, maior tolerância ao esforço físico, e uma recuperação bem mais rápida. Efeitos que não persistem indefinidamente, e se perdem em média numa janela de 3 meses. O que se ganha com esteroides anabolizantes, perde-se sem eles se a abstinência se prolongar.
Os meus 20 anos no fitness permitiram-me viver uma mudança de paradigma algo preocupante. A motivação para o uso de anabolizantes não mudou. Potenciar ao máximo os resultados e conseguir um corpo esteticamente apelativo, por mais subjectivo que isso seja. Mas não só hoje os anabolizantes estão mais banalizados, como a abordagem evoluiu para acompanhar o facilitismo que esta geração vive. Muitos os tomam para treinar menos e facilitar na dieta. E não são poucos os que só treinam quando estão a tomar. Antes era diferente, e não o digo com qualquer tipo de saudosismo. Os esteroides anabolizantes eram vistos como uma “ajuda”, e que ajuda, que permitia treinar mais e mais intensamente. Não fazem o atleta, mas dão-lhe condições para superar as limitações biológicas na recuperação. E também assim eram vistos pelos atletas de elite. Não pelo facilitismo, mas pela oportunidade de se superarem. Não invalidando o efeito que podem ter apenas por si, mas um mau atleta não entra no círculo dos campeões só por estar dopado.
Apesar de ser evidente para quem está no terreno que os anabolizantes exercem um efeito dramático na massa muscular e força, foi apenas em 1996 que Bhasin o deixou claro para a comunidade médica e científica. Até lá a evidência era parca e limitada a estudos metodologicamente deficientes e não-controlados, que levavam à crença de que os efeitos em homens saudáveis eram marginais. Falava-se até num efeito placebo, ou em saturação de receptores pelos níveis naturalmente mais altos nos homens. Hipótese mais tarde refutada, e saturação de receptores é coisa que não parece existir.
Apesar da utilização de esteroides anabolizantes no desporto vir já dos anos 50, só em 1987 o American College of Sports Medicine reconheceu o seu efeito a nível da força e massa muscular de um atleta, com relutância. Um ano mais tarde o canadiano Ben Johnson esmagou o record do Mundo dos 100 m com a ajuda do stanozolol (Winstrol), e venceu Carl Lewis, um herói norte-americano. Um escândalo que dominou os media e feriu o orgulho dos americanos, e em 1990 os esteroides anabolizantes foram classificados como drogas proibidas e controladas. Pouco falado foi o facto de Carl Lewis ter testado também positivo por 3 vezes durante a preparação para nos jogos, mas o resultado não foi reportado. Revelações de 2003 que lhe caíram em cima depois de um discurso tão moralista na condenação de Ben Johnson.
Bhasin demonstrou então quase 10 anos mais tarde que doses suprafisiológicas, 10 vezes superiores às usadas para fins terapêuticos, mas ainda assim comuns para fins de doping, 600 mg de enantato de testosterona por semana, aumentam significativamente a massa magra e força em homens jovens sem hipogonadismo (figura). Um efeito que se revelou sinérgico com exercício físico, mas independente.
Os estudos mostram resultados que na verdade ficam mesmo assim aquém de relatos e observações no terreno. Talvez pela duração relativamente curta dos ciclos e moderação nas doses utilizadas comparativamente às práticas comuns. Bhasin verificou ganhos de 6 Kg em 10 semanas conjuntamente ao treino, o que é significativo mas não extraordinário para uma primeira utilização de esteroides anabolizantes, e foi um dos resultados de maior magnitude reportado em estudos clínicos até hoje. Atletas mais experientes usam doses superiores e combinação de várias drogas que superam as utilizadas por Bhasin em termos cumulativos. De longe...
Para os mais céticos que ainda acreditavam que os anabolizantes só funcionam com treino, o mesmo Bhasin realizou mais tarde em 2001 um outro estudo em que expôs grupos de homens a diferentes doses de testosterona, sem prática de actividade física durante o período de toma (figura). Os resultados são inequívocos. A testosterona aumenta a massa magra em doses supra-fisiológicas, numa relação dose/resposta positiva. Quanto mais, maior o efeito. Assunto encerrado. Se dúvidas houvesse, a testosterona exerce um efeito dramático na massa magra, treinando ou não. Embora o treino desempenhe um efeito sinérgico que em muito potencia o resultado.
É interessante notar também que o efeito dos androgénios na massa magra ocorre de uma forma diferencial e regionalizada. Os ganhos são bem superiores no tronco em comparação com os membros inferiores. Este fenómeno explica-se pela distribuição dos receptores androgénicos (AR), ao qual se liga a testosterona e os seus derivados, que se sabe não ser homogénea pelo corpo. A sua densidade é superior no tronco, o que explica também o dimorfismo que existe entre homens e mulheres no que respeita à massa muscular. A diferença reside essencialmente no tronco e não nas pernas, segmento em que a massa magra não difere substancialmente entre sexos. Os homens produzem cerca de 7 mg de testosterona por dia, e as mulheres 0,05 mg. Qualquer efeito da testosterona é obviamente mais marcado no homem, e acentua o dimorfismo sexual. Mais massa muscular no tronco e cintura escapular mais desenvolvida. No entanto, expostas a menores doses as mulheres experienciam efeitos mais notórios de pequenas variações nos níveis de androgénios. Veem resultados com menos.
A variabilidade do efeito da testosterona, entre sexos, regionalmente ou intra-individualmente, pode ser explicada pela densidade de receptores mas não só. É verdade que existe uma relação entre a quantidade de receptores androgénicos no músculo e o potencial hipertrófico. Mas a acção do receptor da testosterona é também condicionada pelo recrutamento de activadores e repressores transcripcionais que se expressam diferencialmente entre tecidos e até indivíduos. E provavelmente também por variabilidade no próprio receptor. É uma acção intrincada e concertada de vários actores que ainda não está totalmente clarificada. Mas a verdade é que nem todos beneficiam dos esteroides anabolizantes da mesma forma, nem os colaterais se manifestam de uma forma previsível.
Estudos que avaliam o impacto da administração de testosterona em doses supra-fisiológicas, e os que avaliam o efeito terapêutico em homens com hipogonadismo, revelam também uma tendência moderada para perda de massa gorda absoluta. Mas ao contrário do que acontece com os ganhos de massa magra, que são tendencialmente proporcionais à dose, o efeito positivo na perda de massa gorda parece descrever uma tendência em “U”. Em doses infra-fisiológicas e em doses muito elevadas existe um aumento da massa gorda. Mas apesar desse efeito, é na preservação da massa magra e até ganho em restrição calórica que os anabolizantes se revelam uma arma poderosíssima na melhoria da composição corporal. Provavelmente a mais poderosa de todas. Muito mais do que a hormona do crescimento e outras drogas caras de acesso mais “selectivo”. A alocação de energia para síntese proteica mobiliza reservas do tecido adiposo, pois construir músculo é muito dispendioso para o organismo.
Como podemos observar na figura acima, existe de facto um aumento de massa magra proporcional à dose. Mas em doses infra-fisiológicas ou fisiológicas, esses ganhos não se parecem verificar de forma significativa. Apenas a partir de 125 mg por semana começamos a observar um aumento da massa magra, e por isso pouco ou nenhum efeito se verifica quando são administradas doses fisiológicas a homens saudáveis com níveis normais de testosterona. Daí a noção errada que persistiu na comunidade médica durante anos de que os esteroides anabolizantes produziam efeitos marginais na massa muscular de um indivíduo. É tudo uma questão de dose, e não se esperem grandes efeitos em homens eugonadais com doses fisiológicas. Estaríamos apenas a substituir o que eles já produzem.
Cada esteroide anabolizante tem o seu perfil e um impacto diferente na composição corporal, embora os mecanismos de actuação sejam em tudo semelhantes. Só existe um receptor, com uma única isoforma, que todos os esteroides anabolizantes partilham. O receptor androgénico (AR). O que varia é a afinidade, o recrutamento de co-factores de transcrição, e a metabolização em diferentes compostos intermediários com actividade biológica. Um aspecto que parece ser ignorado por muitos utilizadores que optam por combinar uma panóplia de esteroides anabolizantes como se existisse no corpo um receptor para cada um. Um receptor para a testosterona, outro para a oxandrolona, outro para o stanozolol. Não é assim que funciona e combinar várias drogas só aumenta a dose cumulativa e os potenciais efeitos secundários.
Os esteroides anabolizantes são por norma tomados de uma forma cíclica. Daí a expressão “fazer um ciclo”. O próprio John Ziegler recomendava o uso do seu Dianabol por períodos de 6 semanas e pausas de 5 semanas, isto com doses de 5-10 mg convém reforçar. Acredita-se que pausas entre períodos de toma facilitam a recuperação do eixo hormonal e reduzam os riscos. São comuns 2 a 3 ciclos por ano, mas a verdade é que muitos os acabam por tomar de forma contínua para escapar ao drama do período pós-ciclo. Uma fase em que não só há privação da droga como também uma inibição da produção natural de testosterona, que explica a perda gradual do que foi conseguido durante a toma. E além disso, um estado de hipogonadismo com todos os sintomas que o caracterizam. Como um estado depressivo, desmotivação, perda de líbido, entre outros sintomas de natureza psicológica muito debilitantes.
Deixando os anabolizantes
Dos 45% de utilizadores que decidem parar, apenas 40% são bem-sucedidos e não voltam a administrar esteroides anabolizantes. Ninguém se quer sentir do fosso quando a testosterona cai a pique. Depressão, desmotivação geral, falta de concentração, ausência de apetite sexual e impotência, entre outros sintomas bem debilitantes. Por isso há quem sugira uma estratégia de “blast and cruize”, em que não há uma paragem completa do uso, mas apenas uma redução da dose e opção por substâncias que consideram menos nocivas, ou na maioria dos casos por uma dose mais moderada de testosterona. Uma espécie de terapia de reposição. Uma ilusão, pois uma dose tão baixa quanto 100 mg de testosterona por semana inibe o eixo hormonal em 90%. Nunca chega a existir recuperação, e é na verdade uma forma contínua de utilização.
Discutiremos depois mais a fundo a polémica da adição aos esteroides anabolizantes. Um assunto controverso pois não se reconhece um efeito viciante directo como se verifica para os opiáceos ou anfetaminas. Mas a dependência ao efeito e não à droga pode ser suficiente para promover o recurso continuado. Sentimo-nos super-homens quando tomamos, e não queremos perder isso. O corpo que se consegue com drogas também não é mantido sem elas. Se queremos os efeitos, não há como deixar de tomar. É um ciclo vicioso, não pela droga mas pelo resultado, de que é difícil sair. E por isso sim, a grande maioria dos autores atribuiu potencial de adição aos esteroides anabolizantes.
A problemática dos esteroides anabolizantes é ainda um tabu, mas continua a crescer enquanto os profissionais de saúde viram a cabeça para o lado. Falta de formação ou de sensibilidade para a problemática, que não é vista como dependência ou manifestação de problemas de auto-estima proporcionados por uma sociedade competitiva e que valoriza o físico como marca de virilidade e estatuto. Citando Matt Haig no seu livro “Reasons to Stay Alive”, estar satisfeito nos dias que correm com a nossa simples existência é quase um acto de rebeldia. A sociedade está constantemente a exigir-nos mais e melhor. Muito trabalho tem de ser feito para que o assunto mereça a devida atenção, e ignorá-lo como se não existisse certamente não contribui em nada. Ajuda sim a manter o fenómeno na esfera obscura dos “gurus” e parceiros de ginásio, que nem sempre têm o conhecimento necessário ou até o interesse fundamental na saúde do outro.
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