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Foto do escritorSérgio Veloso

Ozempic e outros análogos de GLP-1 para tratamento da obesidade

Atualizado: 16 de jan. de 2023

A polémica recente com a utilização off-label do Ozempic para tratamento da obesidade, cujo semaglutide é o seu princípio activo, trouxe esta família de fármacos para a praça pública. Tal como o liraglutide (Victoza e Saxenda), trata-se de um análogo da GLP-1, uma hormona gastrointestinal com efeitos anorexígenos e anti-hiperglicemiantes. Estes fármacos actuam reduzindo a velocidade de esvaziamento gástrico e motilidade intestinal, amplificando a secreção de insulina e inibindo a glucagina (ou glucagon), e exercendo no sistema nervoso central um efeito inibidor do apetite. Acções estas que culminam numa potencial perda de peso, comprovada em vários ensaios clínicos, além de um controlo favorável da glicemia em diabéticos tipo II para o qual foram primeiramente aprovados. Têm-se mostrado seguros nos testes clínicos, embora sintomas como náuseas e alterações da motilidade intestinal sejam comuns e aceites como “males menores”. Existem também relatos raros de pancreatite em utilizadores destes fármacos.


Os análogos de GLP-1 foram desenvolvidos para controlo da glicemia em diabéticos, mas a perda de peso tornou-se evidente logo nos primeiros ensaios. E estando a diabetes tipo II muito associada à obesidade, a perda de peso por si favorece também o controlo da glicemia e melhoria cardiometabólica geral nestes doentes. Estes medicamentos estão hoje recomendados para casos de diabetes mal controlada, com hemoglobina glicada elevada, excesso de peso, com co-morbilidades e risco cardiovascular. À excepção do Saxenda, liraglutide, o RCM não prevê a sua utilização para perda de peso. A aplicação terapêutica aprovada do Victoza e Ozempic é apenas o tratamento da diabetes tipo II, uma patologia assustadoramente comum e cujo tratamento é, e bem, fortemente comparticipado pelo Estado. Neste caso, a 90%. Uma droga que custa 120 eur como o Ozempic acarreta apenas um encargo de pouco mais de 10 eur ao doente. Ora, a prescrição off-label para a obesidade beneficia irregularmente da comparticipação e elevou em muito os custos do Estado com esta medicação. A procura é de tal maneira grande que o Ozempic esgotou, não só em Portugal mas por todo o mundo. Os diabéticos que usam esta medicação como terapêutica habitual sofrem também com esta ruptura e foram em alguns casos obrigados a encontrar alternativas. Que existem, sem compromisso do controlo da glicemia. Isso que fique bem claro.


Apesar do Victoza e principalmente o Ozempic pela sua maior eficácia não estarem aprovados para o tratamento da obesidade, os seus princípios activos estão. Quer o liraglulide, na apresentação do Saxenda, como o semaglutide, sob a marca Wegovy, da mesma farmacêutica do Ozempic – a Novo Nordisk que detém a patente. O Wegovy ainda não é comercializado em Portugal, mas foi recentemente aprovado no Brasil e já se encontra no mercado em vários países, sem comparticipação na maioria dos casos. Apenas a dose é diferente, por norma mais elevada para perda de peso. Trata-se exactamente da mesma molécula, mas com um nome comercial distinto. Por outras palavras, a diferença está apenas no preço e na comparticipação pelo SNS, que subsidia o tratamento da diabetes, mas da obesidade não. Além do facto da própria Novo Nordisk recusar a indicação terapêutica do Ozempic para a obesidade. Lançou o Wegovy para esse fim, com o mesmo princípio activo mas diferentes dosagens. Como não é aceitável discriminar o mesmo medicamento para diferentes aplicações, lançam-se dois iguais. Um comparticipa-se e diz-se que é para a diabetes. O outro não, para tratar a obesidade.


Não está em causa a irregularidade formal da prescrição do Ozempic para tratamento da obesidade. O RCM não prevê essa aplicação. Mas não condeno o médico que no maior interesse do doente prescreve a medicação para esse fim, não tendo sequer neste momento a alternativa do Wegovy. Que ignore uma decisão meramente administrativa quando o benefício existe. “Ah mas e depois eu que sou diabético não tenho”. Tal como o Ministro da Saúde frisou, e órgãos directivos da Sociedade Portuguesa de Endocrinologia, existem alternativas igualmente eficazes para controlo da diabetes. De repente todos querem o Ozempic e mais nenhum. Porquê? Porque no fundo também querem perder peso! Essa é a verdade. O resto só fumaça retórica. O uso off-label de medicamentos é prática comum. Ninguém se chateia se prescrevem quetiapina para tratar insónias, e o RCM também não prevê. Ou dexametasona para acelerar o desenvolvimento pulmonar pré-natal do feto. Também não está previsto.


E daqui saímos para a questão que realmente interessa no meio de toda esta polémica. O tratamento farmacológico da obesidade deveria ser comparticipado? Talvez seja o momento de a debater. O Estado considera que não, ou “mais ou menos”, limitando o apoio à cirurgia bariátrica. Segundo um relatório recente, a obesidade custa anualmente ao Estado 1,2 mil milhões de euros, por via directa e indirecta. Cerca de 200 eur por português todos os anos, contribuinte ou não. Se metade das prescrições actuais do Ozempic fossem para tratamento da obesidade não-diabética, com um custo estimado de aproximadamente 15 milhões, corresponderia apenas a cerca de 1,5% dos custos totais imputados à obesidade.


Na sondagem meramente exploratória que fiz no Instagram, 68% das pessoas mostraram-se favoráveis à comparticipação da terapêutica farmacológica para a obesidade. Claro que não é uma amostra representativa da população e trata-se de uma temática algo controversa. Lendo a argumentação contra, fica claro que o estigma da obesidade existe. Uma espécie de ordem punitiva. Se é gordo por culpa própria, a sociedade não tem de subsidiar o tratamento. Comesse menos. Que treine e faça dieta. Usar medicação é quase visto como uma “batota” para aliviar um processo que deve ser penoso como castigo. Sentimo-nos no direito moral de condenar alguém pelo que decide da sua vida, e negar ajuda quando ela existe pelo mero preconceito de como deve a obesidade ser tratada.


Esta falta de empatia não se verifica noutros casos. Comparticipar o tratamento de cessação tabágica não gera grande polémica. Nem do cancro pulmonar que foi provocado por culpa própria. Nem subsidiar o tratamento da toxicodependência. Ou da diabetes que a obesidade provocou, podendo ser prevenida. Mas será a obesidade por si uma doença? A Organização Mundial de Saúde não a classifica como tal, embora outras entidades como a American Medical Association sim, desde 2013. Talvez um maior consenso pudesse pressionar o apoio estatal ao tratamento, pois independentemente da classificação formal, os riscos são consensuais. Assim como o peso socioeconómico que acarreta. As contas têm de ser feitas a longo prazo, pois subsidiar o tratamento pode efectivamente sair mais barato. Em sociedade, o bem comum prevalece. Mas numa sociedade avançada, não se sobrepõe ao indivíduo, nem as maiorias decidem direitos das minorias. Embora por este andar a obesidade possa vir a ser a norma se nada for feito.


A verdade é que os análogos de GLP-1, e em particular o semaglutide, se têm mostrado animadoramente eficazes no tratamento da obesidade. Perdas de peso na ordem dos 15-20% não são incomuns. É falacioso dizer que o peso perdido após terapia irá ser recuperado rapidamente. Em muitos casos será sim, provavelmente na maioria, e não estamos perante a solução para a obesidade. Não nos iludamos. Mas a verdade é que a intervenção ao nível do estilo de vida não se revela mais eficaz, e menos de 20% das pessoas consegue manter o peso perdido ao fim de 5 anos. Não interessa de quem é a culpa. Estes são os dados que espelham a realidade. Ambas as intervenções são igualmente pouco eficazes, mas a primeira não invalida a segunda. Na verdade, só assim faz sentido. Aliar o tratamento farmacológico à educação alimentar e mudança para um estilo de vida mais activo. A velocidade e a forma como se perde peso não influencia o sucesso da intervenção a longo prazo, e a ciência é clara em relação a isso. Se as ferramentas existem para tornar o processo menos penoso, então é estúpido não as usar por motivações meramente ideológicas. Não substituem o nutricionista, ou o treinador, mas são complementos que aceleram a perda enquanto se trabalha o mais importante. O depois.


Sou favorável à comparticipação do tratamento farmacológico da obesidade, com regras. Integrado num programa de mudança do estilo de vida, com intervenção do médico, nutricionista, psicólogo, e num mundo perfeito até de um especialista em exercício. Quando inserido numa estratégia coordenada, pode ser um aliado. Mostro-vos um caso real de seguida, mulher, ao longo de 8 meses. Estou certo de que a maioria dos médicos também concordam, e por isso têm desrespeitado de certa forma a regulamentação da prescrição do Ozempic. É mais eficaz e mais barato que o Saxenda, e sem equivalente terapêutico ainda em Portugal. Quando o Wegovy chegar, a realidade será outra. Infelizmente os abusos existem, e vão sempre existir com maior ou menor impacto. Não é aceitável que a medicação seja prescrita para perder aqueles 3, 4, ou até 10 kg que ficam mal no fato de banho, mas que não colocam a pessoa em risco nem encontramos um benefício clínico. Está a ser, e já conheci imensos casos desses, mas as irregularidades não podem inviabilizar o uso por quem dele realmente beneficia. Têm de ser fiscalizadas já que o médico prescreve sob compromisso de honra.





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